esgrima EM CADEIRA DE RODAS
Se existem modalidades paralímpicas que devem grande parte do seu sucesso a iniciativas realizadas em terras paulistas, algumas delas praticamente nasceram aqui. É o caso da esgrima em cadeira de rodas, que teve o brasiliense Valber Nazareth, 49 anos, como grande incentivador da modalidade no final dos anos 1990, quando apenas uma atleta, a carioca Andrea de Mello, defendia o Brasil em competições internacionais. Mas você pode estar se perguntando, qual o legado paulista, uma vez que Valber é natural do Distrito Federal. A resposta é simples, pois ele veio muito pequeno para cá, com a família. “Sou de origem humilde, meu pai era funcionário no Esporte Clube Banespa.
Comecei a trabalhar na instituição como pegador de bola no tênis, e logo fiz amizades com meninos da minha idade”, diz Valber, nessa época com 12 anos. Pois foram esses colegas que falaram para ele da esgrima olímpica, modalidade que era praticada no clube. Na época, o treinador era o mestre Hugo Mattos, que percebeu nele um talento incomum. Valber acabou se tornando militante do Banespa e passou a defender o clube, primeiro na categoria infantil, depois na juvenil, até chegar à seleção brasileira adulta. Em 1997, porém, desligou-se do clube e passou a priorizar a vida acadêmica, em detrimento da de atleta. Formou-se em Educação Física pela Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e posteriormente acabou trabalhando na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Foi lá, em 1998, que passou a trabalhar, de forma voluntária, no departamento de atividades motoras adaptadas.
O contato mais constante com o universo das pessoas com deficiência o levou a pensar na possibilidade de utilizar o esporte que praticou durante anos, para ajudar na reabilitação e formação delas. Apesar de trabalhar em Campinas, morava em Pirassununga, também no interior do Estado. “Ia e vinha, era uma rotina intensa, mas que não me impediu de começar a prática da esgrima com surdos da APAE de Pirassununga. Depois passei a lecionar no Centro Universitário Hermínio Ometto (UNIARARAS) e comecei a trabalhar com pessoas com deficiência física no Centro de Fisioterapia da instituição, também de forma voluntária. Foi aí que comecei a pesquisar sobre a modalidade da esgrima em cadeira de rodas”. Depois de fazer contatos na Federação Brasileira de Esgrima, soube que a modalidade era regulada pela International Wheelchair and Amputee Sports Federation (IWAS) e que sua representante no Brasil, naquela época, era a Associação Brasileira de Desporto em Cadeira de Rodas, a ABRADECAR. Foi quando descobriu que a esgrima em cadeira de rodas no Brasil resumia-se a um único nome, de Andrea de Mello, carioca que defendeu o Brasil nas paralimpíadas de Atlanta 1996, Sidney 2000 e Atenas 2004. “Andrea morou nos Estados Unidos, ela tinha paralisia no hemisfério direito do corpo, conheceu o esporte lá.
Quando fiz o contato com a ABRADECAR, acabaram me convidando para ser coordenador da modalidade, em nível nacional. Aceitei, mas eu já tinha um grupo de cinco atletas treinando comigo em Araras. Comecei então os dois trabalhos em paralelo”. A primeira experiência internacional desses atletas era para ser em 2002, durante uma etapa da Copa do Mundo. Mas a ABRADECAR alegou falta de recursos e Valber acabou indo sozinho, apenas para acompanhar Andrea. “Foi um começo difícil, a ABRADECAR tinha problemas com o Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), mas a viagem foi muito produtiva, porque lá tive o real conhecimento do nível da esgrima em cadeira de rodas no mundo. E posso falar que era um abismo que nos separava, tanto técnica, como financeiramente.
Os equipamentos que usávamos em Araras eram adaptados, nem mesmo um fixador, elemento necessário para a prática da modalidade, tínhamos. Era algo bem improvisado mesmo”. Porém, ao invés de esmorecer, Valber fez o contrário. Conheceu técnicos estrangeiros, especialmente franceses. Começou a organizar os primeiros torneios nacionais, em 2002 e 2003, por meio de contatos que tinha no universo da esgrima olímpica. Em 2004, Valber passou a se preocupar com a disseminação de conhecimento para outros técnicos paulistas e mais alguns estados do Brasil. Foi aí que convidou o grande mestre francês, Jean Deleplanque, para ministrar uma clínica sobre a modalidade no país. A partir da clínica, algumas salas de esgrima passaram, não só em São Paulo, mas em outros estados também, a se interessar pela esgrima em cadeira de rodas. “Minha principal intenção era atrair técnicos envolvidos com a esgrima tradicional, para o universo da esgrima em cadeira de rodas, e isso nós fomos conseguindo aos poucos”. Em 2004 e 2005 foram realizados os primeiros campeonatos brasileiros, mas com poucos atletas. Em 2005 foram sete atletas, sendo que dois deles eram provenientes do grupo original de Araras, treinado por Valber. Ele, entretanto, chama a atenção para outro fator que viria a ser determinante para o progresso da modalidade no Brasil. “Em 2006, o CPB assumiu as modalidades ligadas a IWAS. Com isso, passamos a ter um novo plano de trabalho e mais recursos financeiros para desenvolvimento”. Isso se traduziu em mais viagens e mais torneios internacionais.
O esforço de Valber em disseminar conhecimento começou a surtir efeito e novos talentos surgiram em outros estados. Em 2007, finalmente o Brasil teve uma equipe representante em uma Copa do Mundo, com quatro atletas que foram para a Polônia, entre eles Eduardo Oliveira, aluno de Valber desde o início, em Araras. Em 2008, Valber organizou um segundo curso de capacitação, em Curitiba (PR), novamente com a presença de Deleplanque, além de outros profissionais renomados da modalidade, mas não tivemos participantes na paralimpíada de Pequim, nesse mesmo ano. Em 2009 iniciou-se um novo ciclo paralímpico, com participação brasileira nos Jogos Mundiais organizados pela IWAS, na Índia. Novos talentos começaram a aparecer, como a gaúcha Daiane Peron. Foi em 2011, porém, que o Brasil conquistou sua primeira medalha em Copas do Mundo, em uma etapa no Canadá.
O também gaúcho Jovane Guissone conquistou o bronze na espada, e prata em outra etapa, na Alemanha, na sua classe, a “B1”. Em 2012, um momento mágico para o esporte brasileiro. Guissone surpreende o mundo e conquista a medalha de ouro nas paralimpíadas de Londres. Essa é a única medalha da esgrima brasileira, seja ela olímpica ou paralímpica. O sucesso de Jovane deu mais impulso ainda à modalidade e o Brasil, desde então, se faz presente em todas as provas internacionais pelo ano. São cerca de 5 provas por ano e o Brasil chega a competir com 12 atletas, algo inimaginável até o início dos anos 2000. Na primeira edição da Copa do Brasil, em 2015, cinco estados enviaram representantes: São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Minas Gerais e Rio de Janeiro, num total de 45 atletas. Valber mostra-se esperançoso para o Rio 2016, mas sabe que o desafio é grande. “É a elite do esporte que estará presente, mas depois do Jovane, podemos acreditar em tudo”. Para ele, todavia, o desafio maior é difundir a esgrima em cadeira de rodas para outros estados da Federação. “O caminho é levar o conhecimento para associações de pessoas com deficiência em outros centros. É preciso investir na formação de novos treinadores, pelo país”. Em São Paulo, destaque também para o trabalho desenvolvido na UNICAMP, que formou mais um atleta paralímpico, Lenilson de Oliveira.
O Esporte Clube Pinheiros, celeiro de grandes talentos, também investiu na modalidade. Um de seus atletas é Alex Souza, 40 anos. Alex nasceu com malformação, sua perna direita não se desenvolveu abaixo do joelho e ele não possui as extremidades (falanges), nos dedos do pé esquerdo. “Isso nunca foi problema para mim, sempre fui tratado como igual pela minha família, não havia distinção entre meus irmãos e eu. Minha infância foi normal, jogava bola, subia em muros, árvores, não cresci dentro de uma redoma, muito pelo contrário, fui preparado para enfrentar o mundo”, diz Alex que usa prótese desde os 3 anos de idade. Frequentou escolas regulares normalmente, até formar-se em Educação Física pela Universidade do Grande ABC (UniABC). O esporte adaptado entrou em sua vida aos 20 anos de idade. Primeiro praticou basquetebol em cadeira de rodas e voleibol paralímpico, mas foram experiências curtas. Logo depois começou a praticar atletismo, filiando-se ao Clube dos Paraplégicos de São Paulo, o CPSP.
No início de sua trajetória, ainda competindo pelo atletismo, especializou-se em provas de velocidade, mas logo achou seu verdadeiro lugar nas provas de média e longa distância, as chamadas provas de rua. Em 1999, conquistou o primeiro lugar nos 10 quilômetros da Tribuna, em Santos (SP) e venceu a maratona de Nova York, no mesmo ano. Repetiu o sucesso, ganhando por quatro vezes a maratona de Lisboa (entre 2008 e 2011) e duas vezes a meia-maratona de Buenos Aires (2008 e 2011). Foi em 2010, quando participava do Projeto Próximo Passo, idealizado pela hoje deputada federal Mara Gabrilli, que conheceu a esgrima. “Apesar de ter conquistado grandes resultados nas provas de rua, sabia que seria muito difícil defender o Brasil numa paralimpíada, no atletismo. Esse foi um dos motivos que me fizeram tentar a esgrima em cadeira de rodas”. Depois do início duro no Pinheiros, onde a cadeira era adaptada e os equipamentos ainda não eram os ideais, Alex começou a colher resultados. “Na minha primeira competição, uma Copa do Brasil em Curitiba (PR), dei um toque apenas no meu adversário e logo fui eliminado. Fiquei muito frustrado com aquilo. Mas meu técnico, Marcos Cardoso, me estimulou, disse que no começo seria assim mesmo”. Alex perseverou e em 2011 mostrou todo seu talento, tornando-se campeão paulista e brasileiro no sabre. Em 2012 não foi a Londres, o próprio Alex considerava-se muito cru para uma competição de nível tão elevado como é uma paralimpíada. Mas ele só vem evoluindo e colhendo bons resultados. Sua vaga no Rio não está garantida, pois ele não possui um bom ranking internacional. ”Apesar da esgrima em cadeira de rodas estar se desenvolvendo cada vez mais, ainda faltam recursos para que eu possa disputar torneios internacionais, tenho competido mais pelo Brasil mesmo”. Mas a chance vai vir na seletiva que ocorrerá em maio de 2016, no Círculo Militar, em São Paulo. “Tenho me saído muito bem, se repetir as atuações que venho tendo em treinos e torneios nacionais, tenho certeza que meu sonho de defender o Brasil numa paralimpíada se tornará realidade”. Sobre medalha, acha difícil um pódio. “Mas nunca se sabe, vou dar meu sangue, tudo o que tenho. Hoje tenho boas condições de treinamento no Pinheiros e um ótimo técnico me acompanhando”.
A ESGRIMA EM CADEIRA DE RODAS NO MUNDO
Destinada a atletas com deficiência física, usuários de cadeira de rodas, a esgrima adaptada surgiu em 1953 e foi aplicada originalmente pelo médico alemão Ludwig Guttmann, o pai do movimento paralímpico. O primeiro torneio internacional de que se tem conhecimento são os Jogos de Stoke Mandeville, em 1954. A modalidade, uma das mais tradicionais, é disputada desde a primeira edição dos Jogos Paralímpicos, em Roma (1960). A disputa segue as regras da Federação Internacional de Esgrima (FIE), mas é administrada pelo Comitê Executivo de Esgrima do Comitê Paralímpico Internacional (IPC), e regulada pela International Wheelchair and Amputee Sports Federation (IWAS).
O BRASIL NOS JOGOS PARALÍMPICOS
Andrea de Mello defendeu o Brasil em três paralimpíadas, Atlanta 1996, Sidney 2000 e Atenas 2004, sem conquistar medalhas. Em 2004, decidiu-se pela cidadania norte-americana e passou a defender os Estados Unidos. Não tivemos representantes em Pequim 2008, mas a grata surpresa veio em Londres 2012. O Brasil faturou pela primeira vez uma medalha na modalidade, ouro com o gaúcho Jovane Guissone, que derrotou os franceses Marc Cratere e Alim Latreche nas quartas de final e na semifinal, respectivamente. Na decisão, superou a disputa acirrada com Chik Sum Tam, de Hong Kong, por 15 a 14.
curiosidades
Líder dos duelos: O topo do ranking dos medalhistas na esgrima em cadeira de rodas pertence ao francês Christian Lachaud. O atleta subiu ao pódio nas edições de 1976, 1980, 1992, 1996 e 2000. Apesar de não ter o maior número de pódios nos Jogos Paralímpicos (13), atrás do compatriota Andre Hennaert (14) e do italiano Roberto Marson (15), Lachaud ainda figura em primeiro lugar por ter uma medalha de prata a mais que Hennaert.
FICHA TÉCNICA
Regras: Em competição, as pistas medem 4 metros de comprimento por 1,5 metro de largura, e as cadeiras de rodas ficam fixas ao chão. Se um dos esgrimistas mover a cadeira, o combate é interrompido. Para cada prova, há uma proteção específica para o competidor e para as cadeiras, além de regras para a pontuação ser validada. Além disso, máscara, jaquetas e luvas de proteção são equipamentos obrigatórios. Existem três provas na esgrima: florete, espada e sabre. Em cada uma delas, as armas têm aproximadamente 87 cm. Nos combates com a espada e o florete, os pontos só são computados se a ponta da arma tocar o tronco do adversário. Já no sabre, tanto a ponta quanto a lâmina da arma quando tocadas no oponente garantem pontuação. Com relação à duração dos combates, em competições nacionais e internacionais, existe uma divisão por rodada, sendo os confrontos eliminatórios. Na primeira rodada, máximo de quatro minutos, vence quem marcar cinco pontos (toques). Nas etapas seguintes, cada enfrentamento tem três tempos de três minutos, com intervalo de um minuto entre cada tempo. Vence quem marcar 15 pontos ou tiver a maior pontuação ao fim do combate. Em caso de empate, temos uma prorrogação, com o chamado “golden score”, ou seja, vence quem conseguir dar o primeiro toque durante a prorrogação. Em competições por equipes, vence quem marcar 45 pontos ao fim dos combates.
Classificação: Os atletas são avaliados a partir de testes de extensão do tronco, da avaliação do equilíbrio lateral com membros superiores abduzidos com e sem a arma, da extensão do tronco com as mãos atrás do pescoço, entre outros.
• Classe 1A – Atletas sem equilíbrio sentados, que têm limitações no braço armado, não possuem extensão eficiente do cotovelo em relação à gravidade e não possuem função residual da mão, fazendo com que seja necessário fixar a arma com uma atadura. É comparável à antiga ISMGF 1A, ou tetraplégicos com lesões medulares em níveis C5 e C6.
• Classe 1B – Atletas sem equilíbrio sentados e com limitações no braço armado. Há extensão funcional do cotovelo, mas não há flexão dos dedos. A arma precisa ser fixada com uma bandagem. É comparável ao nível completo de tetraplegia em nível C7.
• Classe 2 – Atletas com total equilíbrio sentados e braço armado normal, com paraplegia do tipo T1/T9 ou tetraplegia incompleta com sequelas mínimas no braço armado e bom equilíbrio sentados.
• Classe 3 – Atletas com bom equilíbrio sentados, sem suporte de pernas e braço armado normal, como paraplégicos da T10 à L2. Atletas tanto com amputação abaixo do joelho, lesões incompletas abaixo da D10 ou deficiências semelhantes podem ser incluídos nesta classe, desde que as pernas ajudem na manutenção do equilíbrio.
• Classe 4 – Atletas com um bom equilíbrio sentados e com suporte das extremidades superiores e braço armado normal, como lesões medulares abaixo da C4 ou deficiências semelhantes.
• Limitações mínimas – Deficiência dos membros inferiores semelhantes a amputações abaixo do joelho.
• No caso de lesões cerebrais ou mesmo em caso de dúvida, é necessário completar a avaliação observando o atleta durante o confronto.